Remeto-lhe essa mensagem com a esperança de que zele para que parte da história da imprensa seja contada de forma a que esteja preservada a verdade dos fatos, como eles ocorreram realmente; para que não prevaleça apenas a versão deturpada dos “donos do poder”.
Lula Miranda
da: Carta Maior
Prezado Jornalista,
Escrevo-lhe do Brasil, cidade de São Paulo, em meados de Setembro do ano de 2010 (a caminho da sagração da Primavera). Peço-lhe o máximo de paciência [a prosa será por demasiado extensa], cuidado, ponderação e desprendimento ao ler esse depoimento/testemunho. Intuo que um calendário, na parede à sua frente, registre um ano qualquer na segunda metade desse século XXI. Certamente, se tomar como parâmetro a realidade dos tempos que você vivencia aí, aquilo que chamaria grosseiramente de “übermídia”, achará absurdos, inacreditáveis mesmo, os fatos que passarei a lhe narrar. Mas, asseguro-lhe, trata-se da mais pura verdade (a tal “factual”).
Estou seguro de que o seu “olhar épico” propiciará um julgamento e uma visão mais eqüidistante e reveladora dos dias difíceis que vivemos por aqui. Remeto-lhe essa mensagem com a esperança de que zele para que parte da história da imprensa seja contada de forma a que esteja preservada a verdade dos fatos, como eles ocorreram realmente; para que não prevaleça apenas a versão deturpada daqueles que chamamos de “donos do poder” [ver Raymundo Faoro].
Aqui, nos dias que correm e, em verdade, desde sempre, os principais veículos de comunicação pertencem a cerca de meia-dúzia de famílias [sim, por incrível que pareça tal oligopólio existe e, o que é pior, ainda é permitido]. Dá para você imaginar o que disso resulta em termos de controle e manipulação da informação? Compreendo ser difícil você ter a mais remota idéia do que essa realidade que vivemos hoje significa [algo aos seus olhos tão distante, extemporâneo, atrasado, estapafúrdio e espúrio], mas...
Digo-lhe ainda outra [impropriedade]: os proprietários desses veículos são aqueles aos quais esses mesmos meios deveriam fiscalizar. Grandes empresários e/ou parlamentares são donos [ou sócios majoritários] dos principais jornais, revistas, redes de rádio e televisão, e suas retransmissoras – até portais de internet. Já pensou no absurdo dessa situação?! Ou seja: a raposa no encargo de tomar conta do galinheiro. Impensável, não?
Esses veículos trabalham em sintonia e em rede. “Claro! Como conseqüência do avanço da tecnologia das comunicações” – exclamaria você, inocentemente. Não propriamente, esclareço. A “sintonia” e a “rede” funcionam aqui com o seguinte significado e fim: todos os veículos, mancomunados, em “sintonia fina”, transmitem de maneira massiva a mesma versão dos fatos e, claro, só os temas e notícias que interessam à preservação do status quo. Estão todos a serviço dos conservadores de sempre, aqueles que querem manter as coisas exatamente como estão; os que defendem o estabelecido [os já citados “donos do poder”].
Captou a nuance da coisa? Tentando ser ainda mais claro: quando eles desejam se ver livre de algum ministro ou alto funcionário do governo que está atrapalhando seus negócios e interesses, ou mesmo se livrar de algum membro do partido desse governo (ou de um partido aliado do governo), ou ainda, em última instância, quando querem/desejam derrubar o próprio presidente começam a “operação bombardeio”. Exemplo de caso: um determinado veículo [por exemplo, a revista Veja, cuja tiragem já foi de um milhão de exemplares, hoje, caindo, na casa dos oitocentos mil] dá como matéria de capa um suposto escândalo contra determinado integrante da máquina pública. Então, na seqüência, o principal noticiário da rede de televisão [o jornal Nacional da Rede Globo – audiência também cadente] dá a notícia com pompa e circunstância. Em seguida, quase sempre de modo simultâneo, todos os demais veículos esquentam e repercutem essa matéria até transformar aquele “suposto” escândalo num fato consumado. Com esse ardil, aprenderam a forjar “novas realidades” ou “supra-realidades”, bem como “novas” lógicas e linguagens, muito semelhantes à “novilíngua” e ao “duplipensar” [ler “1984” de George Orwell].
Um dos dois maiores jornais daqui de São Paulo [com circulação em todo o Brasil], tamanho é o seu parcialismo às escâncaras, que foi recentemente ridicularizado, em escala global, com piadas e mensagens sarcásticas no Twitter [foi trending topic: com cerca de 50.000 mensagens postadas!]. Ou seja: exagerou tanto na dose que se tornou motivo de zombaria na rede. Sobre esse veículo pesquise os seguintes termos ou expressões: “ditabranda” e “ficha falsa da Dilma”. Veja a que ponto seus editores chegaram, a que nível baixaram! É de estarrecer.
Porém, reitero o devido registro, talvez até por se utilizarem desses artifícios antiéticos, capciosos, esses veículos estão perdendo, a cada dia, mais e mais leitores, condenados que estão ao descrédito – e, você bem sabe, a credibilidade é o maior patrimônio intangível de uma empresa de comunicação. A falta de credibilidade certamente os conduzirá, de modo célere, à bancarrota.
Peço-lhe desculpas, pois sei que falo sobre coisas que há muito deixaram de existir aí no seu tempo: revistas, jornais, televisão, Veja, Rede Globo etc. Imagino que aí, na segunda metade do séc. XXI, a internet holográfica (em 3D) e a blogosfera sejam as principais fontes de informação. Por aqui ainda vivemos a expectativa desse auspicioso “porvir”. Mas a blogosfera já se insinua como a ponte que nos auxiliará nessa grande e instigante travessia.
As redações dos grandes veículos da mídia, nos dias de hoje, têm, como se fossem supermercados, um verdadeiro estoque de falsas denúncias. Metaforicamente falando, são prateleiras e mais prateleiras onde estão dispostas, e muito bem organizadas [por partido, por grupo de interesse, por esfera de governo (federal, estadual e municipal), por cargo na hierarquia governamental etc.], denúncias diversificadas, “escândalos” variados. Tem escândalo para toda hora e ocasião.
“Mas não é exatamente essa a função dos jornalistas: vigiar governos, instituições e fazer denúncias?” – ponderaria você, com legítima razão. É verdade. Mas o “demônio” se esconde nos detalhes – como se diz por aqui. O problema é que os grandes veículos nos dias de hoje só fazem denúncias contra os partidos desse governo que aí está, de um perfil e estrato mais popular, e nenhuma crítica ou denúncia para valer contra os partidos das elites conservadoras, que desejam a todo custo e meios retomar o poder. Outra: a maior parte dessas denúncias é nitidamente falsa ou manipulada; muitas delas são “plantadas” pelas máfias da política e da imprensa, algumas são grosseiras “armações”. Acredite no que lhe digo.
Quem são/eram os “fornecedores” dessas denúncias ardilosas? Os jornalistas compactuavam/aceitavam esse estado de coisas? São perguntas mais do que legítimas, óbvias, e sei que você as está formulando nesse exato instante. Com relação aos fornecedores, num dado instante, houve uma deturpação do chamado “jornalismo investigativo”. Jornalistas passaram a se utilizar dos serviços de estelionatários e “arapongas” [inclusive ex-agentes da época da ditadura] que, por sua vez, se utilizavam de métodos similares aos utilizados pelas máfias – foi aí, tudo indica que, o jornalismo se irmanou ao crime e começou a cair em desgraça.
Já sobre o silêncio e cumplicidade, tenho uma teoria, pois testemunhei inúmeros casos: basta dar a um jornalista trinta, cinqüenta e até cem mil “dinheiros” [converta à moeda da sua época] de salário por mês que esse indivíduo, como num passe de mágica, se transforma e passa a falar com a voz do chefe, e a pensar com a cabeça do patrão. Os demais, os “focas” ou os jornalistas “proletários”, são, quase sempre, pessoas honestas, decentes, mas nada podem fazer por medo de perder o emprego (têm muitas bocas a alimentar – daí utilizar-me do termo “proletários”). Em face disso, creio, o mau-caratismo começou a prevalecer.
Tem também a questão do “mensalão” da mídia [“Mensalão” - rótulo que a grande mídia deu a esquema de caixa 2 dos partidos da base aliada ao atual governo]. Mas esse tema requer uma outra carta.
Sei que você deve estar pensando que tudo isso é absurdo, vergonhoso e se indagando como é possível que jornalistas e cidadãos em geral se submetessem a esse estado de coisas. Saiba que, para mim, é deveras constrangedor confessar-lhe que vivi nesses tempos de vergonha e infâmia. Porém, informo-lhe, apenas para registro, por mais incrível que isso possa lhe parecer, quando reclamávamos disso (perante o Congresso e as instituições) éramos estratégica e maliciosamente rotulados de “stalinistas”, de “inimigos da democracia”, e de que estávamos cometendo um atentado contra a liberdade de imprensa; redargüíamos, tentávamos explicar, incessantemente, diuturnamente, que estávamos indo em verdade, não contra, mas a favor desse “princípio dos princípios” – de nada adiantavam os nossos argumentos. Assim tentavam nos calar e impediam qualquer tentativa de democratização dos meios, ou mesmo qualquer embrionária iniciativa que visasse esse fim.
Veja bem, o que buscávamos era exatamente uma imprensa livre! Livre por princípio. Livre das sombras, das amarras e dos ditames dos interesses escusos dos patrões e seus grupos de pressão. “Utópicos”, “idealistas”, desejávamos exatamente uma imprensa livre, libertária e comprometida apenas com a verdade factual e a serviço de todas as classes [com ênfase, claro, nos desassistidos e nos trabalhadores]; a serviço do homem enfim. Acredite se quiser, mas, como disse, é a pura verdade.
Desculpe-me ter me utilizado de excessivo número de caracteres nessa comunicação. Ainda somos demasiadamente “prolixos” e pretensamente “literários”. Saudações de tempos pretéritos.
Lula Miranda
Lula Miranda é poeta e cronista. Foi um dos nomes da poesia marginal na Bahia na década de 1980. Publica artigos em veículos da chamada imprensa alternativa, tais como Carta Maior, Caros Amigos, Observatório da Imprensa, Fazendo Média e blogs de esquerda.