22.11.11

O torturador de Dilma vai depor?

via Sul21

Wilson Dias / ABr
Dilma Rousseff: "A verdade sobre nosso passado é fundamental para que aqueles fatos que mancharam nossa história nunca voltem a acontecer" | Foto: Wilson Dias / ABr
Luiz Cláudio Cunha
Especial para o Sul21
A verdade se corrompe tanto com a mentira como com o silêncio.
(Marco Túlio Cícero, 106-43 A.c, citado por Dilma Rousseff)

Um quarto de século após o fim da ditadura, em 1985, o Brasil ganha afinal a sua Comissão da Verdade. Na histórica manhã desta sexta-feira, 18 de novembro de 2001, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira que sobreviveu a três semanas de tortura no período mais duro do regime militar, sancionou no Palácio do Planalto a lei que cria a comissão encarregada de investigar violações aos direitos humanos cometidos pelo regime dos generais. A primeira mulher presidente do Brasil fez o que seus cinco antecessores homens do período democrático não tiveram força ou coragem para fazer: dotar o país do mecanismo legal capaz de resgatar a verdade e a memória soterradas pela treva do arbítrio.
Ausências e presenças na solenidade do palácio mostraram o que a presidente da República teve que enfrentar até assinar as duas leis que quebram o sigilo de documentos oficiais e que instauram a comissão.
Uma figura carimbada em todas as cerimônias palacianas brilhou pela ausência: o presidente do Congresso Nacional, senador José Sarney (PMDB-MA), não estava lá, amargando a derrota de sua manobra para preservar um absurdo sigilo eterno sobre os papéis públicos. Uma derrota compartilhada com seu aliado de segredos inconfessáveis, o senador Fernando Collor (PTB-AL), outro ilustre derrotado do dia.
Quatro figuras estreladas, em contrapartida, estavam lá, discretamente alinhadasna segunda fila de autoridades: os comandantes militares do Exército, Marinha, Aeronáutica e Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Aplaudiram pouco, sem entusiasmo, mas pelo menos estavam presentes, privilégio que não teve o antecessor de Dilma. Quando o Planalto lançou, em agosto de 2007, o livro Direito à Memória e à Verdade, um corajoso trabalho de 11 anos da Secretaria de Direitos Humanos, iniciado ainda no Governo FHC, nenhum chefe militar compareceu à cerimônia presidida pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, o presidente Lula. Era a acintosa censura da caserna ao documento oficial que reconhecia pela primeira vez a violência do regime militar, listando os nomes de 339 mortos e desaparecidos pela repressão política.
A voz da comandante
Os comandantes que se ausentaram do Planalto em 2007 — o general Enzo Peri, o brigadeiro Juniti Saito e o almirante Júlio Soares de Moura Neto — eram os mesmos chefes militares que estavam presentes em palácio nesta sexta-feira. A única diferença, de lá para cá, foi a troca de guarda na presidência da República: saiu Lula, entrou Dilma, e os ministros que ainda sobrevivem no governo sabem fazer a distinção.
Um ano atrás, no ocaso do governo anterior, o mesmo trio bombardeava a ideia da Comissão da Verdade e ousava confrontar o projeto do presidente Lula, num documento enviado ao ex-ministro da Defesa Nelson Jobim, argumentando: “Passaram-se quase 30 anos do chamado governo militar…“.
Agora, os chefes militares tiveram que ouvir, disciplinados, o eloquente e emocionado discurso da presidente Dilma, que ensinou: “São momentos difíceis, acontecimentos que foram contados sob um regime de censura, arbítrio e repressão, quando a própria liberdade de pensamento era proibida. É fundamental que a população, sobretudo os jovens e as gerações futuras, conheçam o nosso passado, principalmente o passado recente, quando muitas pessoas foram presas, foram torturadas e foram mortas. A verdade sobre nosso passado é fundamental para que aqueles fatos que mancharam nossa história nunca voltem a acontecer”.
O general Peri, o brigadeiro Saito e o almirante Moura Netoagora com certeza sabem o que seria um ‘chamado governo militar’, pela voz autorizada da comandante-suprema das Forças Armadas, que resume tudo aquilo pela palavra simples e consagrada que define este tipo de regime: ditadura.  Até ouvir essa lição de moral, os militares e a plateia no Planalto tiveram que esperar quase uma hora além do previsto. A razão do atraso foi explicada pelo jornalista Lauro Jardim, o editor bem informado da coluna ‘Radar’, da revista Veja: o pau quebrou no gabinete de Dilma, quando o cerimonial avisou que um dos discursos estava reservado ao familiar de um preso torturado. Os ministros José Eduardo Cardoso (Justiça) e Maria do Rosário (Direitos Humanos) defendiam, o ministro Celso Amorim (Defesa) rejeitava com firmeza a proposta. Após um tenso debate, ficou garantida a palavra a Cardoso e, em troca do familiar, falou o presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Marco Antônio Rodrigues Barbosa.
A emenda ficou pior do que o soneto. Sem se intimidar com a cara fechada dos militares, Barbosa atacou no seu discurso a Lei da Anistia e sua “esdrúxula figura do crime conexo de sangue”, a esperteza jurídica que nivelou torturadores aos torturados, consagrando a impunidade. O ato solene do Planalto ecoou imediatamente em Nova York, onde a criação da Comissão da Verdade foi saudada como “um grande passo” pela Alta Comissária dos Direitos Humanos da ONU, a sul-africana NaviPillay, que emendou: “A norma deveria incluir a promulgação de uma nova legislação para revogar a Lei da Anistia de 1979 ou para declará-la inaplicável, facilitando o julgamento dos supostos responsáveis por violações dos direitos humanos. Ao impedir a investigação, ela leva à impunidade, em desrespeito à legislação internacional”.
Até Uganda
Pillay sabe do que fala: ela foi a primeira mulher não branca nomeada para a Suprema Corte da África do Sul, antes de ser indicada para a Corte Criminal Internacional, o tribunal com sede em Haia dedicado a crimes contra a humanidade e integrado por 117 países — entre eles o Brasil. Mês que vem, dezembro, esgota-se o prazo para o Brasil se defender da condenação sofrida um ano atrás na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) por não ter investigado os crimes de detenção arbitrária, tortura, execução e desaparecimento de 62 militantes do PCdoB, combatidos pelo Exército na guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1975. Lá não serviu o pretexto brasileiro de que os crimes estavam protegidos pela anistia. A OEA e as cortes internacionais os consideram crimes comuns e imprescritíveis, que estão acima da ‘autoanistia’ que os militares se concederam no Governo Figueiredo, o último dos cinco generais que se revezaram no poder entre 1964 e 1985.
A simples assinatura da lei que acaba com o sigilo de documentos e cria a Comissão da Verdade parece ter sido a parte mais fácil para Dilma, apesar da longa, arrastada costura política que colocou o Brasil numa situação vexatória no Cone Sul. Das grandes ditaduras da região, o país é o último a se mover para investigar os crimes do seu passado recente, tarefa já cumprida de forma exemplar na Argentina, Chile e Uruguai. Ali, militares e torturadores estão sendo investigados e julgados e já cumprem longas penas. O general argentino Jorge Rafael Videla, que iniciou a ditadura mais sangrenta do extremo sul do continente em 1976, hoje cumpre duas penas de prisão perpétua em Buenos Aires pelo envolvimento direto em dezenas de mortes e desaparecimentos.Trinta e quatro países no mundo já criaram suas Comissões da Verdade, muito antes do Brasil. “Este é o nosso momento, esta é a nossa hora”, justificou a presidente Dilma Rousseff.
Por falta de empenho, o Brasil perdeu a vez para países que repassaram abusos há muito tempo, com comissões que pertencem agora ao passado: Argentina (comissão encerrada em 1984), Chile (1991), El Salvador (1993), Haiti (1996), África do Sul (2002), Peru e Uruguai (2003), entre outros. A primeira Comissão da Verdade nasceu na Uganda do folclórico ditadorIdi Amin Dada no distante 1974, ano em que o Brasil via a troca de guarda entre os generais Garrastazú Médici e Ernesto Geisel, os dois governos mais sangrentos da ditadura que parecia então interminável.
Os trabalhos da missão brasileira só devem começar em maio de 2012, quando Dilma deverá escolher e anunciar os sete membros da comissão, que terão dois anos e 14 funcionários para ajudá-los numa tarefa gigantesca: investigar os abusos aos direitos humanos cometidos em 8,5 milhões de km² ao longo de 42 anos, o espaço de tempo entre as duas últimas Constituições democráticas do país: as de 1946 e 1988. Esta foi uma cínica exigência dos chefes militares, para camuflar o verdadeiro foco da Comissão da Verdade — os 21 anos da ditadura do ‘chamado governo militar’ de 1964 a 1985. Com a concessão, o país faz de conta que investigará também os governos civis dos presidentes Dutra, JK, Jânio, João Goulart e Sarney.   O ‘jeitinho’ brasileiro funciona aqui dentro, mas não convence lá fora. A revista britânica The Economist desta semana analisa o atraso brasileiro no trato dos crimes da ditadura de 1964.
Duplo equívoco
Apesar de ter nos últimos 17 anos de presidência três vítimas do regime militar — FHC exilado, Lula preso e Dilma torturada —, o Brasil só verá sua Comissão da Verdade em ação a partir de maio próximo, 27 anos após a saída do general Figueiredo pela porta dos fundos do Palácio do Planalto. A Argentina enfrentou o problema já em 1983, ano da queda deReynaldo Bignone, o último general, condenado em março passado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade. A Suprema Corte do Chile decidiu em 2004 que a anistia não cobria os desaparecimentos do regime Pinochet. O Parlamento do Uruguai derrubou em outubro passado a autoanistia — justamente o contrário do Brasil, que viu o Supremo Tribunal Federal confirmar, por 7 votos a 2, a autoanistia concedida pelo general Figueiredo em 1979 e aprovada num Congresso dominado pela legenda da ditadura (221 cadeiras da ARENA contra 186 do MDB), que garantiu a chicana jurídica do “crime conexo” para salvar o pescoço dos torturadores.
O relator do STF, ministro Eros Grau (um ex-preso político torturado no DOI-CODI de São Paulo, o mesmo onde padeceu Dilma), e o relator da Comissão da Verdade no Senado, o senador do PSDB paulista Aloysio Nunes Ferreira (um ex-militante da ALN, organização guerrilheira comandada por seu amigo Carlos Marighella), cometeram o mesmo e indefensável equívoco, alegando que a Lei da Anistia era intocável por ser fruto de “entendimento nacional”. Não foi nada disso.
Apesar da larga maioria governista na Câmara dos Deputados, em 1979, a ditadura penou para aprovar a lei sob encomenda dos quartéis por apenas cinco votos de diferença — 206 a 201. Um especialista em Nova York do International Center for Transitional Justice, Eduardo González, diz que a demora brasileira em relação aos vizinhos aconteceu porque “a transição brasileira para a democracia foi lenta e controlada”. O ativista gaúcho Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, resume a questão numa frase mais precisa e cortante: “Não houve justiça de transição no Brasil. Aqui, houve justiça de transação”.
The Economist diz que a repressão no Brasil continua até hoje, “embora a violência seja policial e não mais do Exército”. Só no Rio de Janeiro, a cada ano, a polícia mata cerca de mil civis, “a maioria deles pobres e negros”, lembra a revista, denunciando que a “truculência da polícia raramente é punida e é frequentemente aplaudida”, como aconteceu na ocupação da favela da Rocinha e nas sessões lotadas do filme Tropa de Elite.
A solidez da broa
Tirar a comissão do papel, na verdade, será bem mais difícil do que o festivo ato de sua criação. A começar pela complexa escolha de seus sete integrantes, de competência exclusiva da presidente Dilma, “entre brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos”. O grupo terá um perfil de imparcialidade, sem cargos em partidos ou cargos de comissão em qualquer dos três poderes. Isso, na prática, significa que militares e agentes da repressão, bem como familiares de desaparecidos ou ex-presos políticose torturados não têm espaço na comissão. É o que acha o ex-preso da guerrilha do Araguaia e torturado José Genoíno, hoje assessor especial do Ministério da Defesa, que definiu: “Colocar ex-preso político na comissão não dá certo. Preso de um lado e militar de outro, pela ideia do equilíbrio, criaria um impasse na comissão. Seria um jogo de soma, que vai ser igual a zero”.
Uma obsessão permanente, de um lado e outro, foi o combate ao princípio da revanche. “O Brasil se encontra consigo mesmo, sem revanchismo, mas sem a cumplicidade do silêncio”, pontuou a presidente Dilma no seu discurso. Muito tempo foi gasto para negociar uma únicapalavra no parágrafo 3º do inciso VIII do Art. 4º: “É dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão Nacional da Verdade”.
Os militares não queriam estar ali, no que lhes parece ser o banco dos réus, submetidos ao escrutínio tardio de seus abusos. Queriam substituir o mandatório”é dever” pelo condicional “poderão”, com um sentido mais ameno de convite, a ser aceito ou não. Perderam a batalha. Mas ganharam a guerra decisiva do parágrafo seguinte, o 4º, que decreta: “As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório”.
Ou seja, o que for dito ou revelado numa audiência salgada da comissão terá o mesmo destino de uma plácida broa de milho no pacato chá das cinco dos imortais na Academia Brasileira de Letras: virar farelo, pura migalha. Nenhum efeito legal ou jurídico irá decorrer mesmo no caso de uma improvável confissão de culpa em atos de tortura ou crimes de desaparecimento. Para não deixar margem a qualquer risco, o inciso V do artigo anterior, o 3º, estabelece que todas as apurações sejam feitas no âmbito da Lei de Anistia de 1979 — aquela mesma que, segundo a ditadura e o Supremo Tribunal Federal, perdoou para sempre torturadores que nunca foram condenados, sequer julgados. Será um jogo de soma zero, como prefere Genoíno, ou uma inaceitável limitação, como define o senador Pedro Taques (PDT-MT): “Não há justiça enquanto algumas pessoas não forem responsabilizadas”.
Credora do país
A impunidade, estimulada pelos quartéis e abençoada pelo STF, será sacramentada na Comissão da Verdade pelo desfile inócuo de personagens que, desde já, sabem que nada do que for revelado — se revelado — produzirá quaisquer efeitos ou danos jurídicos. A fantasia da imparcialidade oculta a certeza de que os únicos crimes a serem investigados são os do aparelho de terror do Estado, até hoje intocado e intocável no Brasil.
Os militantes que combateram a ditadura com o desespero da luta armada foram confrontados, caçados, presos, torturados, desaparecidos ou mortos. Os que sobreviveram foram processados, condenados, encarcerados e, anos depois, anistiados pela mesma lei que espertamente acabou beneficiando seus algozes. Uma sobrevivente foi uma guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), ‘Estela’, codinome de uma economista mineira chamada Dilma Rousseff, presa e torturada em 1970 no DOI-CODI de São Paulo. Sobreviveu e foi condenada pela Justiça Militar a seis anos de prisão. Cumpriu três e, com o recurso, acabou punida com dois anos e um mês de cadeia. “Sobraram 11 meses, que eles não me devolveram. Sou credora do país”, brincava Dilma, então chefe da Casa Civil de Lula, numa entrevista que fiz com ela no final de 2005 para a revista IstoÉ.
Os vitoriosos, que comandavam os prédios públicos e os porões com as ferramentas de suplício do terrorismo de Estado, saíram impunes e ilesos desse confronto desigual. Os perdedores, que sangraram nas celas imundas doaparato repressivo clandestino do regimede tortura e censura que impuseram ao país durante duas décadas, escaparam com suas vidas destroçadas, os corpos machucados e o estigma de ‘terroristas’, ironicamente outorgado pelos terroristas oficiais que os combateram à margem da lei e da civilização. Um lado pagou, até com o sangue e a vida, as suas penas. O outro lado nem passou pelo singelo constrangimento do devido processo legal. Como é típico de um ‘ governo chamado militar’.
A Comissão da Verdade não perderá seu tempo se convocar o depoimento de um pacato veranista das águas mansas da praia das Astúrias, no litoral paulista do Guarujá, onde vive o anônimo Maurício Lopes Lima. É um tenente-coronel reformado do Exército. Nos anos 70, era um dos mais temidos capitães do DOI-CODI da rua Tutóia, o maior centro de torturas do país.
Um dia chegou às suas mãos um sobrevivente da máquina de moer carne do DOPS do notório delegado Sérgio Fleury: o dominicano Tito de Alencar Lima, o frei Tito, ligado à ALN de Marighella e do senador Aloysio Nunes Ferreira. O capitão Lopes Lima deixou o judiado Tito sob o trato nada misericordioso de seis homens de sua equipe e do ímpio pau-de-arara.
O nome do bonzinho
No seu depoimento à Justiça, frei Tito contaria depois: “O capitão Maurício veio me buscar em companhia de dois policiais. ‘Você agora vai conhecer a sucursal do inferno’, ele disse”. Santa verdade. Meses depois, cada vez mais atormentado pelos demônios da tortura, frei Tito foi para o exílio e acabou se enforcando no bosque de um mosteiro nos arredores de Lyon, França, em 1974, um mês antes de completar 30 anos. Em novembro do ano passado, quatro dias após a eleição para presidente da ex-guerrilheira que sobreviveu à sucursal do inferno do capitão, o Ministério Público Federal ingressou com uma ação civil pública na 4ª Vara Cível de São Paulo contra três oficiais do Exército e um da PM, acusados pela morte em 1971 de seis presos políticos e pela tortura em 20 guerrilheiros. Um dos oficiais é o capitão Lopes Lima, uma das guerrilheiras é Dilma Rousseff.
Com o cinismo típico de sua turma, o capitão Lopes Lima deu uma entrevista ao jornal Tribuna de Santos, logo após a eleição de sua ex-presa: “Se eu soubesse naquela época [1970] que ela seria presidente, eu teria pedido – ‘Anota aí meu nome, eu sou bonzinho’”. A Comissão da Verdade devia anotar o nome do hoje tenente-coronel Maurício Lopes Lima e convocar para depor o homem que garante saber muito mais sobre o Brasil daqueles duros tempos: “Tortura era a coisa mais corriqueira que tinha. Toda delegacia tinha seu pau-de-arara. Dizer que não houve tortura é mentira, mas dizer que todo delegado torturava também é mentira. Dependia da índole”, disse ele ao jornal. A índole de Lopes Lima era bem conhecida por Dilma, que o vetou como testemunha de acusação no seu processo da Justiça Militar: “O capitão é torturador e, portanto, não pode ser testemunha”, esbravejou a torturada.
Quando foi presa, aos 22 anos, Dilma foi levada pelo antecessor do DOI-CODI, a OBAN (Operação Bandeirante), para a rua Tutóia, o mesmo destino do jornalista Wladimir Herzog cinco anos depois. Lá, ele aguentou um dia de tortura — e morreu. Dilma suportou 22 dias – e sobreviveu. “Levei muita palmatória, me botaram no pau-de-arara, me deram choque, muito choque. Comecei a ter hemorragia, mas eu aguentei. Não disse nem onde morava. Um dia, tive uma hemorragia muito grande, hemorragia mesmo, como menstruação. Tiveram que me levar para o Hospital Central do Exército. Encontrei uma menina da ALN: ‘Pula um pouco no quarto para a hemorragia não parar e você não ter que voltar’, me aconselhou ela”, segundo o dramático relato que Dilma fez em 2002 ao repórter Luiz Maklouf Carvalho.
A oitiva do torturador da presidente é fundamental porque os documentos sobre ele estão virando farelo, como a broa dos imortais da Academia. No início de julho passado, o jornalCorreio Braziliensenoticiou o estranho sumiço, nos arquivos do Exército, dos documentos funcionais do tenente-coronel Lopes Lima. O ministro da Defesa Nelson Jobim informou ao Ministério Público, com a candura dos inocentes, que os documentos que poderiam atestar a tortura em Dilma tinham sumido: “Vários dos possíveis documentos referentes aos acontecimentos mencionados, bem como os eventuais termos de destruição, foram destruídos [sic]“. Ou seja, os documentos foram deliberadamente destruídos e os papéis que atestavam esta autorização também sumiram…
No ato solene do Planalto, a presidente Dilma falou da importante conexão entre a criação da Comissão da Verdade e a lei que escancara, sem qualquer restrição, os documentos sobre abusos aos direitos humanos. “Uma não existe sem a outra. Uma é pré-requisito para a outra”, reforçou. Minutos antes, falando ao vivo na tv estatal NBR, a secretária nacional de promoção dos direitos humanos da Presidência da República, Nadine Borges, foi ainda mais otimista: “Não estamos partindo do zero, em termos de documentação. Só no Arquivo Nacional temos mais de 20 milhões de documentos do Projeto Memória Revelada”.
O começo do fim
Nessa bolada de papéis, porém, não estão os documentos esfarelados do Exército sobre o torturador de Dilma. Dele e de muitos mais. Em julho passado, falando ao jornal O Estado de S.Paulo, o sonso Nelson Jobim explicava ao repórter porque não acreditava em polêmica sobre o fim do sigilo sobre papéis sensíveis do período da ditadura: “Não há documentos [sobre o regime militar]. Nós já levantamos e não têm. Os documentos já desapareceram, foram consumidos [sic] à época”, disse o então ministro da Defesa, sem explicar quem consumiu e como desapareceu um acervo sob a guarda de instituições militares que jamais denunciaram este espantoso sumiço. Naquela época, Jobim reclamava estar cercado por idiotas, o que não é difícil de entender.
Com este mau exemplo de cima, é difícil ser otimista quanto à boa vontade dos órgãos militares e antigas repartições do aparato repressivo para fornecer documentos oficiais à curiosidade dos cidadãos brasileiros. A melhor esperança para acesso a papéis fundamentais de nossa história recente é a memória privatizada dos tempos da ditadura. Veteranos das Forças Armadas ou velhos servidores da repressão devem guardar em baús escondidos em suas casas os documentos que, em algum momento, sobreviveram ao sumiço programado de evidências incômodas sobre abusos cometidos nos porões. De repente, um ou outro arquivo costuma aparecer em reportagens esparsas de jornais e revistas, brindados com depoimentos de torturadores arrependidos ou testemunhas inesperadas.
A nova circunstância política criada pela lei pioneira de acesso a documentos e pela nascente Comissão da Verdade pode gerar um clima de confiança que desperte a memória ou injete confiança em personagens imprevistos que podem jogar luz sobre a treva espessa do regime militar. Por si só, a lei e a comissão não têm instrumentos ou indução para forçar a passagem da verdade, enredados num cipoal de restrições legais e condicionantes calculadas que inibem o acesso a novas informações. Como sempre, a pressão da sociedade civil é que irá determinar se a Comissão da Verdade terá, ou não, fôlego para remover o entulho de mentiras da ditadura.
A tardia e enfraquecida Comissão da Verdade talvez não represente o fim da ditadura finada em 1985, mas pode ser o começo do fim da impunidade insepulta há um quarto de século. Um bom início é começar pelo fim, mostrando força para convocar e ouvir o homem que torturou a presidente da República.
Anotem o nome dele: tenente-coronel reformado do Exército Maurício Lopes Lima, o bonzinho.
Se vencer esta primeira batalha de fogo, a Comissão da Verdade mostrará que é, realmente,de verdade.
* Luiz Cláudio Cunha é jornalista (cunha.luizclaudio@gmail.com)

21.11.11

"Não haverá nunca mais uma Bolívia sem índios"


via Carta Maior

Em entrevista à revista chilena Punto Final, o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Liñera, analisa a conjuntura política de seu país e da América Latina e fala sobre o recente conflito com setores indígenas bolivianos envolvendo a construção de uma estrada. "Há uma mistura entre legítimas preocupações e demandas de setores sociais. Se não houvesse, teríamos que falar de uma sociedade morta. "Não haverá nunca mais uma Bolívia sem índios. Os indígenas adquiriram consciência de sua maioria e do seu poder", diz Liñera.

Álvaro Garcia Liñera é o mais importante intelectual latino-americano contemporâneo e – também por isso – um dos mais destacados dirigentes da nova esquerda latino-americana. Depois de um começo em que se enfrentou e derrotou a direita boliviana, o governo de Evo Morales – de que Álvaro é vice-presidente e principal formulador estratégico – passou a sofrer o que ele caracteriza como contradições no seio do povo boliviano

Um país marcado pela capacidade combativa e reivindicatória do seu povo, que teve no movimento indígena e na liderança política de Evo Morales e Álvaro Garcia Linera, a força de resistência aos governos neoliberais e de conquista do governo. Governo que, por sua vez, convocou a Assembleia Constituinte, deu início à refundação do Estado, agora com caráter plurinacional, nacionalizou as minas, deu inicio à reforma agrária, retomou a expansão econômica e desenvolveu grande quantidade de programas sociais. Alem disso, resistiu às tentativas de golpe e derrotou politicamente à direita.

Mais recentemente – em especial a partir do fim do ano passado e ao longo deste ano – surgiram conflitos dentro do campo popular. Primeiro sobre uma medida do governo de retirar subsídios ao gás, para combater o contrabando, o que foi enfrentado duramente pelos movimentos sociais, que não se contentaram com as medidas compensatórias do governo, levando a que Evo tivesse que suspender as medidas. 

Outros conflitos surgiram no campo popular, o mais recente aquele em torno da construção de uma estrada interna à Bolívia, que passaria por uma reserva indígena e encontrou forte resistência da população indígena local e apoio dos povos indígenas de outras regiões, que seriam beneficiados pela integração nacional que significaria a estrada. Depois de vários enfrentamentos, o governo terminou suspendendo a construção. 

A mídia se fartou de noticiar os conflitos – tanto a boliviana, como a internacional -, aderindo, de forma surpreendente e oportunista a causas indígenas e ecológicas, de que foram sempre os principais adversários. A direita boliviana se assanhou, via no conflito uma possibilidade de se reconstruir. Quando Evo conseguiu um acordo com os movimentos indígenas da região e terminou o conflito, nenhum órgão da imprensa noticiou. 

Durante o conflito vários órgãos de setores da própria esquerda latino-americana, deram amplo eco, sempre destacando as posições dos que protestavam e nunca a do próprio governo. A entrevista que Carta Maior reproduz, realizada por Paul Walder e recolhida da excelente revista chilena Punto Final, permite a Álvaro Garcia Linera desenvolver o ponto de vista do governo de Evo Morales. Significativamente, não foi reproduzida nem por publicações de esquerda do continente.

Como sempre acontece na América Latina contemporânea, o que interessa à direita é enfraquecer as lideranças populares, seja na Bolívia, na Venezuela, no Brasil, na Argentina, no Equador, no Uruguai, no Peru, em El Salvador, no Paraguai. E setores do campo popular várias vezes se deixam levar pelas versões dos conflitos dadas pela velha mídia golpista do continente, as reproduzem e tomam posição com base nessas campanhas conservadoras e golpistas, que tem sempre o apoio dos EUA e da sua mídia.

Uma entrevista como esta é incômoda para a direita, porque contradiz suas versões falsas sobre os conflitos e para a ultra esquerda, porque confirma como o Brasil é considerado parte integrante da nova esquerda latino-americana, porque desmistifica concepções conservadoras no campo da ecologia e porque representa uma interpretação política e anti-corporativa da luta pela construção de uma hegemonia alternativa , de superação do neoliberalismo na América Latina.

(Tradução e apresentação de Emir Sader)

- Surgiram novamente conflitos sociais, que estão evidenciados na marcha dos indígenas do Tipnis. Como se interpreta esse movimento de massas em um contexto revolucionário protagonizado pela própria sociedade, pelos próprios povos?

- Há uma mistura entre legítimas preocupações e demandas de setores sociais. Se não houvesse, teríamos que falar de uma sociedade morta. Todo processo revolucionário não é homogêneo, senão seria uma ditadura. Um processo revolucionário é uma mudança contínua, envolvendo tendências, demandas, posições. A revolução é a forma de discorrer, orientados a fins e metas comumente construídas. Nesta etapa, derrotado inicialmente o adversário fundamental e seu projeto de Estado, de economia, de sociedade, - conservador, neoliberal, racista, neocolonial -, a efervescência tende a se concentrar no interior do movimento popular, o que chamamos de tensões criativas da revolução, contradições secundárias por um lado e de outro, porque não há um desenho de como se conduz uma revolução. Nem Lenin o tinha.

Todo processo revolucionário sempre teve essa complexidade em relação a seus caminhos. Começam a surgir tensões no interior do movimento popular como parte da construção do processo revolucionário e o governo deve saber muito bem ouvir, equilibrar, potenciar. Mas como o adversário foi derrotado só temporariamente em sua forma visível e personificada, tentará converter as tensões internas em contradições que dividam o bloco, que o enfraqueçam e o desgastem. Sinto que estamos vivendo na Bolívia essas tensões, desde as que surgem de movimentos legítimos. É muito legítimo que os companheiros se preocupem com o futuro do bosque, mas também é legitimo que se reivindique uma estrada para unir regiões.

Sobre estas reivindicações vão se encontrar legítimas preocupações próprias dos setores sociais, mas às vezes está a presença maligna de outro tipo de interesses, de orientações politicas que tentarão manipular, cooptar, dirigir estas tensões para gerar uma confrontação.

- Uma revolução é um processo que tem um horizonte. Para onde avança esta revolução? Quais são os riscos de estagnação, de retrocesso ou de perda com este tipo de conflitos?

- Este é um processo de transição para uma nova estrutura social, que não vamos construir sozinhos. É uma nova estrutura social de caráter planetário. Há alguns companheiros que nos pedem que a Bolívia faça o que tem que ser feito no mundo. Nos pedem o comunismo. Como pedem tanto a um país pequeno! A Bolívia dará sua contribuição, existe a decisão, a vontade, certas potencialidades presentes em sus estruturas comunitárias nos colocam em boas condições.

Transição, sim, mas até quando? Até que outros países, outros setores sociais, possam se acoplar a esse ritmo. Como um pequeno país de 10 milhões de habitantes pode apontar para um lugar se o resto do continente está apontando para outro? Mas seguimos adiante. Temos um norte, que é uma sociedade pós-capitalista , que chamaremos socialista, comunista, mas isso não se faz em nem em um ano, nem em dez, nem em décadas, e tampouco a Bolívia o fará sozinha, nem o continente, mas o mundo. A Bolívia pode oferecer entregar sua experiência nesse caminho.

- Que visão você tem do processo que está vivendo a região?

- Creio que o continente está vivendo o momento mais progressista, até certo ponto revolucionário, dos últimos 50 ou 100 anos. O retrocesso da lógica neoliberal, tão destrutiva, criminosa, que expropria os direitos sociais e as conquistas humanas que tinha a sociedade há alguns anos. Ao mesmo tempo esse fenômeno foi permitindo a presença de governos progressistas, de esquerda, revolucionários, no continente, o que não significa necessariamente governos de caráter socialista. O interessante é que esta emergência não é causal, mas permite que o continente se converta em uma espécie de avançada planetária e de debates. Estamos debatendo o que fazemos com a saúde, com a educação, o que fazemos com os bosques, com a economia, de uma maneira muito saudável, muito fresca, sem tutelas, sem essa atitude servil das elites governantes anteriores, que assumiam que tudo o que diziam os EUA e a Europa era sagrado. Essa barbaridade, sacralizada durante 20 anos no continente, retrocedeu. Isso nos fez refletir, mesmo nos equivocando, desde nossa própria experiência, criatividade e liberdade.

O interessante é que isto surge em meio a duas coisas: uma crise da hegemonia norteamericana no mundo inteiro, talvez perigosa para a América Latina, mas que também permite que entre um ar fresco, que se rompam certas muralhas asfixiantes com que os EUA tinham controlado o continente. A América Latina pode olhar para outros lados, para a China, por exemplo, para satisfazer certas necessidades da sua economia. Isso levou a que o continente esteja em uma excelente situação: governos progressistas, maior amplidão de vinculação econômica, menor dependência dos medos e das crises que se dão no mundo inteiro e a capacidade de resistência a partir das próprias economias e da articulação regional.

- Vivemos uma crise mundial e uma queda do preço das matérias primas , o que afetará as economias exportadoras. Como a articulação regional pode enfrentar essa situação? 

- Eu acho que o continente, de uma maneira não muito planificada, mas convergente, foi criando um espaco regional. Por que as economias latino-americanas não foram tão afetadas pela crise econômica global, tanto em 2008 como agora? Porque diversificam seus produtos para vários mercados e porque apostaram também nos seus próprios mercados internos, como Brasil, Argentina, Venezuela, Bolívia. Exportamos muito, o dobro ou o triplo do que há cinco anos, mas a metade do nosso crescimento hoje depende do mercado interno. Há mais mercado regional. Deram-se as três receitas: diversificação dos mercados internacionais, maior vinculação regional das nossas economias e uma forte presença do mercado interno, mesmo se não tanto como nos anos 50.

- Que peso tem a articulação econômica regional nos processos revolucionários? Que estrutura você considera que tenha a Unasul? Levando em conta que na America Latina há também grandes corporações, como participa o mercado?

- É difícil. Se queremos ser realistas, avançar para um modelo socialista é lento. As velocidades dos povos são muito diferentes. O que, sim, podemos imaginar no curto prazo é este espaço regional atuando em sintonia no contexto de um espaço mundial. Pode-se definir, a partir das suas riquezas internas, um melhor posicionamento de cada país em particular, mas apresentado como coletivo no contexto mundial, como provedores de matérias primas, níveis de formação profissional mais ou menos avançados, vinculação com os dois oceanos, possuidores de riquezas chave para a economia do século XXI, começando pela água, a biodiversidade, o petróleo, o lítio, os alimentos.

Em alguns países há uma presença maior da iniciativa privada, em outros mais presença do Estado. Internamente, cada país saberá absorver e distribuir da melhor maneira em função de sua própria composição interna. Mas hoje, na maior parte do continente, eu diria que em 80%, as correntes apontam para uma maior presença do Estado. Da mesma forma, pelo desenvolvimento dos povos se instalará uma agenda de maior equilíbrio. 

Não é um regresso ao estatismo absorvente, que tapa os poros da sociedade; é uma mistura, uma tensão criativa, de presença do Estado como distribuidor da riqueza e presença do privado como dinamizador de iniciativas econômicas. O Brasil, à sua maneira, a Venezuela, à sua maneira, a Bolívia à sua maneira.... não há um modelo. Aqui ninguém pode impor ao outro um modelo, ninguém pode nos dizer: este é o caminho.

- No caso da Bolívia falamos de economia plural. Quais são as forças principais que explicam o forte desenvolvimento econômico dos últimos anos?

- A economia está definida para satisfazer necessidades humanas, para gerar bem estar, não para acumular riquezas. A Bolívia baseou seu crescimento econômico em exportações e no crescimento interno. Estamos exportando mais gás, mais minerais e os preços subiram. Excelente. Mas, além disso, hoje 80% da riqueza fica em mãos de bolivianos, diante do 80% que ficava em mãos estrangeiras. Modificou-se a relação de propriedade e o controle do excedente, exportou-se mais, mas também se conseguiu um desenvolvimento, uma expansão gigantesca da atividade econômica interna.

Isto significa melhor distribuição interna, potencialização da economia local, da pequena produção, da economia camponesa. A Bolívia apostou na exportação e no mercado interno. Tanto como modelo de desenvolvimento econômico, modo de distribuição da riqueza e modo de expansão de satisfação das necessidades das pessoas. Essa é a grande diferença com o modelo neoliberal. O país cresce a uma taxa alta, mas a apropriação da riqueza é coletiva.

- Mas a estes evidentes avanços sociais, surgem movimentos como o dos indígenas do Tipnis. Você vincula o aberto e, certamente, suspeitoso apoio da direita aos indígenas como a busca do desgaste do governo para tentar uma restauração conservadora?

- O adversário não desaparece. Se estão afetando interesses seus muito grandes. É evidente que querem, de uma forma ou de outra, que este processo termine. Olhe bem: antes todo o dinheiro que chegava ao Estado era entregue a pequenas elites financeiras, agroindustriais e familiares. Para o campo e para as pessoas da rua, nada. Agora o Estado tem cinco vezes mais dinheiro. Você acha que há gente nesse país que não deseja usufruir desse dinheiro? Que um camponês – ou um professor universitário – esteja redirecionando esses recursos para beneficiar aos mais humildes quando isso poderia estar potencializando as economias das suas famílias, como faziam antes, isso não vão nos perdoar nunca. Não perdoarão que a renda da economia boliviana não seja canalizada para os grupos familiares que controlavam o país.

- Todos estes argumentos apontam a que a crise pode se profundar em qualquer momento...

- Está sempre aí o risco da restauração. Tentaram. Tentaram me matar, assim como ao presidente Evo. Tentaram um golpe de Estado há só três anos. Há três anos governávamos somente dois estados: La Paz e Oruro. Não podíamos viajar pelo país ou chegar a um aeroporto regional, tinham invadido as instituições, ministros renunciavam, as secretárias choravam, a segurança nos dizia que daqui só sairíamos mortos. E, depois disso, a contratação de mercenários para tentar criar um conflito que permitisse a intervenção da ONU. Tentaram tudo e seguramente virão mais dificuldades. A direita nunca vai parar de tentar nos derrubar.

Não pode fazê-lo agora como projeto alternativo. Há cinco anos havia um empate catastrófico, com dois projetos políticos que disputavam a adesão militante da sociedade. Mas um deles foi derrotado, o projeto neoliberal. Mesmo se esse projeto não existe, isso não significa que não haja reação nem risco de restauração aproveitando as fissuras que lhe propiciem. São conflitos que se dão no interior do bloco popular, que tem que se dar e necessariamente se dão, mas se não se sabe tratá-los de maneira revolucionária e democrática, podem se converter em ponta de lança para a potencialização da reação.

- Apesar disso se avança e se aprofunda o processo revolucionário. Quais são as prioridades para consolidá-lo?

- É preciso seguir considerando essas tensões, seguir aprofundando o processo da revolução, da transformação, potencializar os setores subalternos. Dissemos que nesta etapa, uma vez que se tem o poder político, o que é necessário é avançar na direção do poder econômico. Que a sociedade do trabalho amplia o poder econômico. Essa é a coisa complicada, que não se faz por decreto. Tem a ver com a capacidade economicamente auto organizativa da sociedade. O Estado pode brindar elementos, recursos, mas a força auto organizada da sociedade nao lhes é dada pelo Estado.

- Mudança política, econômica. O processo de mudança e o poder político em mãos indígenas permitiu que surja a verdadeira identidade da Bolívia?

- Não haverá nunca mais uma Bolívia sem índios. Assim, em alto e bom som. Os indígenas adquiriram consciência de sua maioria e do seu poder. Essa representa uma conquista irreversível na memória e na pele das pessoas. A questão é se se consolidará o indígena organizado, assumindo a liderança do Estado, como acontece hoje, ou simplesmente como um agregado secundário e quase testemunhal, como costuma acontecer em outras partes do mundo. Não por ter tomado consciência de sua situação significa que se tenha o poder.

- Voltando aos problemas atuais, é possível que a heterogeneidade dos movimentos sociais que constituem a base do governo tenda hoje à fragmentação? Esse é um problema real? É necessária uma institucionalização política maior?

- Lembre-se que a social democracia europeia surgiu dos movimentos operários no século XIX. Eram fundamentalmente estruturas sindicais. Depois veio o processo de institucionalização partidária. Já no século XX o movimento operário aparece subordinado a uma estrutura política. Há algo de novidade, mas também de continuidade no que acontece hoje na Bolívia. Eu não diria que a falta de institucionalidade seja um elemento deficitário. O risco é que a institucionalização separe o partido, a elite política e a tomada de decisões das organizações sociais. Essa é a experiência europeia que não deveria se repetir. 

Qual é o ensinamento da Bolívia comparado com o começo da social democracia, no começo do século XX? Que essa separação entre ação reivindicativa e ação politica é uma separação artificialmente construída; que é possível que ambas caminhem juntas, que o reivindicativo é politico. Absorvemos do movimento social as reivindicações de nacionalizar, as reivindicações da Assembleia Constituinte, as demandas para industrializar. Isso nao surgiu da reflexão partidária. Ou a própria tomada do poder: indígenas tomando o poder. Isso não surgiu de um partido político e nem sequer de um partido político indígena. Surgiu da ação coletiva. A Bolívia é um exemplo de que a ação reivindicativa pode ter níveis de universalidade, isto é, de construção de uma plataforma de caráter nacional.

- Apesar disso persiste o problema: creio que há uma certa fragilidade política na simples reivindicação, que sempre é corporativa e, portanto, fragmentada.

- O movimento social nem sempre constrói reivindicações de caráter universal. Isto acontece de maneira excepcional. Esta é uma das tensões criativas que estamos vendo. Depois da grande onda vem a retirada. E durante essas retiradas, que podem ser temporais ou prolongadas, o movimento social se refugia no plano corporativo. Este é o problema de hoje, não a falta de institucionalização. O problema é que o movimento social tende em certos momentos ao corporativo, o que os leva a um vazio. O que fazer no momento em que um grupo quer tudo, inclusive com o risco de arruinar o resto. Marx não diz nada, Lenin tampouco, Robespierre tampouco, talvez Mao, mas é muito críptico o que ele escreve. Em que apoiar-nos? É preciso inventar o caminho próprio. É preciso dar mais poder ao Estado ? Mas como, para que o Estado nao arrebate iniciativas à sociedade. Estas são as tensões criativas, que não estão em nenhum manual.

Por enquanto, a sociedade se retira sobre si mesma. É preciso confiar na revitalização da sociedade. Não importa que haja marchas, mas que se reivindique o universal, porque assim surgiu este processo, quando companheiros indígenas, camponeses, operários, se viram como gente abusada, humilhada, mas que entendiam que sairiam dessa situação juntos. Assim foi criado este processo. Então, é preciso seguir confiando nessa força vital da sociedade. O Estado não pode substituir a sociedade e menos ainda um Estado revolucionário, mas ao mesmo tempo tampouco pode ficar cercado pelo corporativismo das organizações sociais. Tem que avançar reivindicando o que há de comum, mas apoiado no social. É preciso confiar que haverá uma nova onda, que alguns setores impulsionarão o universal e outros não. Então, com o apoio destes setores e baseado no dialogo democrático, impulsionar o universal.

- Durante o século XIX se formou uma convicção política que marcou grande parte desse século e do seguinte, mas talvez é apenas uma função de líderes e intelectuais...

- As pessoas lutam por coisas concretas. Nós, os intelectuais, os políticos, inventamos ideais para mover-nos moralmente. As pessoas que buscam comida, trabalho, com o tempo vão construindo ideais em torno dos quais se agrupam, mas é um processo longo. Se perguntam, por exemplo: Tenho que nacionalizar os hidrocarburetos? Por quê? Porque o país e seus cidadãos necessitam esses recursos. Porque neste país há recursos que não chegam a mim, que são levados pelos estrangeiros. A partir da sua vida concreta se constroem os ideais. Este é apenas um despertar, que pode ser asfixiado, mas é um despertar em um processo de longa duração. A América Latina ainda dará muito que falar em termos dos seus processos revolucionários que são de ida e volta. Não nos imaginemos processos de ascensão permanente.

- Como no movimento chileno pela educação: do concreto ao universal?

- A reivindicação da educação como direito coletivo é algo fundamental. Não só afeta a maneira como um governo imaginou o uso dos recursos do seu orçamento, afeta uma política de governo. Se coloca também em debate a educação como um bem público, que o Estado deve assumir ou como um serviço privado cujo acesso depende do tamanho da carteira de cada um. Essa é a logica neoliberal da educação. Mas há uma terceira camada, que nos leva ao velho debate marxista do valor de uso e do valor de troca. A educação é um valor de uso, um bem necessário que o ser humano necessita para satisfazer suas necessidades ou é um negócio, uma mercadoria? Nesta reivindicação tão simples se está jogando a política governamental, a lógica neoliberal, a razão estrutural de uma sociedade.

Por isso é tao bonita essa reivindicação. Onde aparece tem essa profundidade estrutural, que nos comove a todos. É um fato universal. Não é sindical ou reivindicatório. Os jovens que lutam pela educação, que o fazem também na Europa, estão lutando por um novo universo, por um novo entendimento do que é patrimônio de todos, direito de todos para serem ser humanos, para ser cidadãos, independentemente do território ou da condição econômica.