11.11.12

Iuri Muller: Estilhaços de uma noite de maio (um dedo de prosa sobre a repressão na Argentina)

Por Iuri Müller via Sul21


Em uma estação da linha General Roca, a de Wilde, partido de Avellaneda, Francisco Alonso vê o trem que se aproxima e encerra com rapidez o assunto anterior: “as balas sempre passaram perto, mas eu escapava. Talvez pela disposição da lua, das marés, caso eu apele à cultura popular”. Francisco Alonso, “El Negro” – o peronista revolucionário, o que pegou em armas para resistir à ditadura militar, o que esteve apurando o tiro em Havana e que viu Juan Domingo Perón inaugurar largos viadutos no sul da Província de Buenos Aires – há pouco rememorava sentimentos de quatro décadas atrás. Comia fiambres, bebia cerveja fria e recordava. Nem tanto os passos firmes da Revolução Cubana, que pôde ver de perto nos anos sessenta. Tampouco dedicaria muitas frases à participação na guerrilha peronista. Alonso falava da noite em que viu a Confitería La Real de Avellaneda salpicada por disparos criminosos, a noite em que os companheiros caíram mortos ao seu lado. Noite que talvez se perdesse na conturbada história argentina daqueles anos não fosse pela investigação de um jornalista que, entre um trago e outro, começou a questioná-lo assim: “Alonso, o que de fato aconteceu naquela noite de 1966?”.
Francisco Alonso, um metro e sessenta de altura, dono de um bigode que esconde algumas palavras, hoje vive perto do bar que sediou de forma involuntária a matança daquele ano. Mas no sábado em questão ruma até Wilde e aceita o convite para um almoço improvisado. Quem o convida, o recebe e apresenta é Enrique Arrosagaray, articulista e escritor da mesma cidade. Enrique dedicou parte da vida a investigar a história, as contradições e os textos de Rodolfo Walsh (1927-1957), autor de, entre outros títulos, “Operação Massacre”. Alonso, ao que consta, é o último protagonista vivo de “¿Quién mató a Rosendo?”, o livro-reportagem em que Walsh ilumina o então obscuro tiroteio daquele ano. Um fato que se tornou passado há mais de quatro décadas. Alonso se assusta com a conta, com as recordações que sempre voltam, mas muitas imagens se mantiveram firmes na memória. Lembra a pizza que pediram ao garçom, o brinde que ergueram a um dos amigos, a discussão que inicia perto de um dos banheiros, as primeiras trompadas com o grupo do mafioso Augusto Timoteo Vandor, as balas voando no saguão do bar.
Carnet nacional de periodista profissional de Rodolfo Walsh
E lembra o tipo quieto, o tal Rodolfo, que quase dois anos depois se interessaria por cada minúcia e prometia escrever a real versão do que era visto pela polícia e pela imprensa como uma troca de tiros entre duas linhas do sindicalismo argentino. “El Negro” Alonso tinha apenas vinte e três anos e era um militante político em formação quando pôde escapar vivo daquele trágico baile em que a pólvora estalava. Da porta de entrada da Confitería La Real saiu para vagar, por angustiosos dias, entre locais presumidamente seguros na Grande Buenos Aires. A polícia já tinha o seu nome, e parecia um desaforo ter escapado ileso daquele bar. A estranha morte de Rosendo García aqueles sobreviventes teriam que explicar. Na rápida passagem pela casa da família, disse que para salvar a pele dos demais desapareceria por uns tempos – palavras suficientes para fazer crescer o desespero da mãe. Mas Alonso já havia testemunhado outras tormentas políticas na mesma Argentina, revoadas que não o abandonariam até o final da vida.
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No início dos anos 1950, a luta social era assunto em qualquer sobrado, fábrica ou calçada de Buenos Aires. Mas, para quem vivia os dias amarelos da infância, o carisma de Perón, a insistência dos inimigos do General e o futuro da pátria não importavam tanto assim. Mais importante era o futebol com os vizinhos do bairro, improvisado nos potreiros de terra batida, em tardes que se prolongavam até o sol cair ou algum familiar despótico dizer basta. Alonso regressava de uma dessas partidas, entre sorridente e embarrado, quando encontrou a casa cinza, a mãe chorando baixo. Aquele pranto tinha a dor do luto. Alonso pensou inevitavelmente que alguma pessoa próxima havia morrido, mas logo pôde entender a estranheza de alguns rostos que haviam passado pelo campinho: a defunta que carregava de lágrimas o rosto de sua mamá era Evita Perón. Talvez tenha sido ali que o peronismo passou a acompanhar Alonso pelas longas temporadas seguintes.
Três anos depois da morte de Evita, aviões circundaram a Plaza de Mayo em nome da Revolução Libertadora que derrubou Perón. Os golpes de Estado na Argentina continuariam ocorrendo nas décadas seguintes, e as ditaduras eram apresentadas com títulos dotados de alguma pompa. Da Revolução Libertadora para a Revolução Argentina, em 1966. E, dez anos depois, teria início o tenebroso Processo de Reorganização Nacional. Eram transtornos políticos que não apenas respingavam em Alonso, mas capazes de alterar a rotina de qualquer trabalhador. Em 1966, Francisco pôde sentir por antecipação a mudança de comando que logo ocorreria no país. Afinal, um mês antes do golpe daquele ano Alonso, Domingo Blajaquis, Juan Zalazar e outros sindicalistas contrários à direção da Confederación Nacional del Trabajo (CGT) presenciaram o perigo de uma burocracia sindical que se aproximava dos núcleos mais conservadores da sociedade argentina. Isso em uma noite que, em tempos de paz, seria marcada por não mais que um bar de brindes e alguns pedaços de pizza.
‘Fiel ao compromisso que escolhi de dar testemunho nos momentos difíceis’. Homenagem a Rodolfo Walsh na Rua Perú, em Buenos Aires
Alonso e seus companheiros acomodaram-se na Confitería La Real numa mesa razoavelmente próxima à porta que dava para a rua Mitre. Vinham de um ato de apoio ao sindicato dos trabalhadores da cana de açúcar de Tucumán e aproveitariam a parada para festejar um feito singelo num ano complicado. Zalazar, um dos militantes da CGT que “estava com Perón”, havia por fim conseguido um emprego na região. Para ele, Alonso e os demais ergueram os seus copos. Minutos depois, viram Augusto Timoteo Vandor, Rosendo García e outros homens adentrarem o salão. Vandor liderava o setor dito tradicional da CGT. Rosendo García ascendia rapidamente nas mesmas filas. Eram homens com incontestável força política no sindicalismo e estavam munidos de revólveres e muita ambição: a Vandor, diziam uns quantos, correspondia o sonho de ser maior do que Juan Domingo Perón. O encontro entre um representante de cada bando ocorre perto de um dos banheiros – após ligeira discussão política, surgem os primeiros empurrões. E logo os violentos e surpreendentes disparos.
Os garçons frearam o atendimento às mesas da casa, os demais frequentadores se esconderam das balas como puderam, retângulos de vidro se estilhaçaram e foram três os que caíram mortos naquela noite de maio. Domingo “El Griego” Blajaquis e Juan Zalazar, entre os companheiros de Alonso, além de Rosendo García. Se esta foi uma noite larga, as próximas poderiam ser descritas como intermináveis: os sobreviventes tiveram de resistir clandestinamente no conurbano bonaerense, perseguidos pela polícia e julgados pelos jornais. A Argentina queria ver presos os assassinos de García, homem então cotado para concorrer ao cargo de governador da Província de Buenos Aires. Do sangue e da memória de Blajaquis e Zalazar, poucos quiseram lembrar. De que aquele tiroteio pudesse ter outra versão, quase ninguém desconfiou. Dois anos depois, Rodolfo Walsh publicou as notas que dariam origem ao livro “¿Quién mató a Rosendo?”. E assim escreve no prólogo, em tradução livre:
“No chamado tiroteio de La Real de Avellaneda, em maio de 1966, resultou assasinado alguém muito mais valioso do que Rosendo. Esse homem, el Griego Blajaquis, era um autêntico herói da sua classe. Também foi baleado outro homem, Zalazar, cuja humildade e cuja desesperança eram tão insondáveis que resulta como um espelho da desgraça operária. Para os diários, para a polícia, para os juízes, esta gente não tem história, tem prontuário; não os conhecem os escritores nem os poetas; a justiça e a honra que merecem não cabem nestas linhas; algum dia, no entanto, resplandecerá a beleza dos seus feitos, e a de tantos outros, ignorados, perseguidos e rebeldes até o final”.
‘Para os diários, para a polícia, para os juízes, esta gente não tem história, tem prontuário — não os conhecem os escritores nem os poetas’.
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Francisco Alonso pôde recuperar a tranquilidade apenas depois da tardia elucidação dos acontecimentos. Através das reportagens de Walsh, que coletou depoimentos, acompanhou peritos e estudou a geografia interna da Confitería La Real, ficou provado que não houve um tiroteio, mas sim uma tentativa de fuzilamento. Apenas os homens de Vandor e Rosendo estavam armados – de modo que as balas que derrubaram Zalazar, Blajaquis e o próprio Rosendo García saíram de um mesmo lado, com as piores intenções. É aceita a versão de que Vandor, aproveitando-se de uma situação de tumulto e descontrole, teria eliminado adversários da luta sindical e uma das figuras em ascensão do próprio grupo. A violência fazia os piores pesadelos deslizarem para a vida real na Avellaneda dos anos 1960. Mesmo com as denúncias apresentadas e publicadas no semanário da CGT, os culpados pouco ou nada se incomodaram. Como escreveu Walsh, “o sistema não castiga os seus homens: os premia”.
Naquela noite, as balas passaram ao lado de Alonso. Não foi a primeira vez que conviveu com a proximidade dos projéteis. “El Negro”, quem sabe algo mais incrédulo quanto à pontaria da morte, não buscou outra vida. Esteve em Cuba, ao lado da Revolução Cubana, onde realizou instrução militar para desenvolver grupos guerrilheiros pelo continente. Do grupo de argentinos que partiu para Havana, Alonso foi o que permaneceu mais tempo na ilha. Impressionou pela mira certeira e esteve a ponto de ser enviado para o foco guerrilheiro da Bolívia. O desenrolar da luta de esquerda, entretanto, fez com que logo tivesse que retornar a Avellaneda. Em solo argentino, tampouco havia paz. Os dribles diários na repressão militar não eram infalíveis: certa vez, foi pego com o “Manual do Guerrilheiro Urbano”, do brasileiro Carlos Marighella. Foi preso e enviado a Quilmes, cidade em que conheceu a temida picana e outros dos instrumentos de tortura. As horas em que passou estaqueado resultaram em terríveis dores nos braços e houve quem recomendasse um psicólogo.
“Como eu vou conversar com um psicólogo se nem para os policiais que me torturavam eu falei?”, debocha Alonso. Disse que viveu tempos em que não se podia falar tudo, conhecer os fatos por inteiro. Não que os dias atuais sejam tão mais simples assim. Mas Alonso confia no atual governo, crê na força popular que o peronismo – uma das ideias políticas mais amplas da América Latina – ainda exerce. Enquanto caminha de volta à estação de trem de Wilde, lamenta que o clássico entre Independiente e Racing, marcado para aquela tarde, tenha sido suspenso pela chuva que alagou a Província de Buenos Aires em agosto. Diz que não houve nenhum jogador como Ricardo Bochini em Avellaneda. E, já dentro do antigo vagão da Linha General Roca, admite nunca ter lido o livro do qual se fez personagem. Por quê? “Que motivos eu tenho para ler, se sou o protagonista? Vai me dizer coisas que eu já sei, e quem sabe coisas que eu nem disse”.

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