9.3.12

Lídia Possas: luta feminista é espaço para uma nova democracia

por André Carvalho via Sul 21

Antônio Milena/ABr
"Não há uma guerra entre os sexos, mas sim uma guerra contra as resistências da sociedade como um todo", diz historiadora da Unesp | Foto: Antônio Milena/ABr
Doutora e coordenadora do grupo de pesquisas LIEG (Laboratório de Interdisciplinar de Estudos de Gênero) da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), em Marília, a historiadora Lídia Maria Vianna Possas afirma que a luta feminista alcançou um estágio de pluralidade na América Latina. Com o qual, aparentemente, ainda enfrentamos dificuldades em lidar. “A gente não pode falar hoje em movimento feminista, a gente fala hoje em movimentos feministas, porque você vai ter colorido e nuances muito diversificados na América Latina”, afirma. “Democracia não é plasmar em uma homogeneidade. Hoje nós vivemos um momento muito rico, com a presença do que chamamos de polifonias femininas”, acrescenta a historiadora.
Em entrevista ao Sul21, concedida durante as atividades do Seminário Internacional Mulheres e a Segurança Pública, em Porto Alegre, Lídia Possas falou, a partir de uma perspectiva histórica, sobre a luta das mulheres sul-americanas por igualdade, em um processo que respeite a heterogeneidade das demandas feministas. “Ainda são visíveis as dificuldades que as mulheres têm para alçar postos políticos, lugares de poder”, diz a historiadora. “Não há uma guerra entre os sexos, mas sim uma guerra contra as resistências da sociedade como um todo”.
Sul21 – Quando teve início a luta das mulheres sul-americanas pela igualdade de direitos?
Lidia Possas - Todas as nossas lutas políticas, enquanto feministas, sempre tiveram como referência a Europa. Sempre foi um modelo branco europeu ou branco estadunidense. Mulheres de classe média. Eu observo que no final do século XX, com a redemocratização da América Latina, com o processo de consolidação da democracia e o fim da guerra fria, a democracia e a igualdade passaram a ser principios. Mas não uma igualdade a partir de um modelo que seria a igualdade da revolução francesa: uma igualdade diferenciada, uma igualdade que respeitasse as multiplicidades. Entretanto, dentro dos movimentos feministas, que é de natureza política, houve uma implosão, porque a direção do movimento de feministas era composta por mulheres, geralmente intelectualizadas e de esquerda. Elas tinham como princípios a luta contra o capitalismo e a luta contra as ditaduras militares. Só que passada a ditadura, estas feministas perceberam que havia outros movimentos de mulheres que não eram intelectuais nem de esquerda. E que levantavam outras bandeiras: elas queriam creches, elas queriam condições, elas queriam combate a inflação, pois nós saímos da ditadura com uma inflação altíssima.
Sul21 – Quais são as consequências dessa implosão para os dias de hoje?
Lidia Possas – Hoje, os movimentos de mulheres são diferentes, com demandas bem diversificadas. Há o movimento de mulheres e o movimento de feministas. O movimento de mulheres atende os anseios de suas comunidades e, é claro, as feministas tiveram que incorporar isso como lutas e bandeiras feministas. A gente não pode falar hoje em movimento feminista, a gente fala hoje em movimentos feministas, porque você vai ter colorido e nuances muito diversificados na América Latina. Hoje nós vivemos um momento, uma conjuntura muito rica, da presença dessa multiplicidade, daquilo que chamamos de “polifonias femininas”, quer dizer, as várias vozes das mulheres. E a gente tem uma dificuldade de viver com a heterogeneidade. Uma democracia não é plasmar em uma homogeneidade, pelo contrário. Mas muitas vezes as pessoas acreditam que sim, dizendo que a voz da maioria é a voz de todos. E pelo menos na luta feminista, nós estamos exercitando uma nova democracia, ou uma prática democrática que não estava na Revolução Francesa. Porque lá eles vêm de uma sociedade aristocrática, de bens de nascimento, baseada na individualidade da pessoa, na propriedade privada, onde todo mundo é igual perante a lei. Isso foi um grande engodo, porque quem era igual perante a lei?
Su21 – A lei da igualdade era diferente para os dois sexos…
Lidia Possas – A Revolução Francesa foi um grande retrocesso para as mulheres. Elas lutaram na revolução e voltaram pra casa, porque o ideal republicano instalado era de que elas se tornassem mães, produzissem cidadãos para a república. Então a maternidade foi exacerbada. E nós estamos hoje lidando com isso. E pra lidar com isso, você tem que partir de um pensamento, de um raciocínio que atue de uma maneira mais conciliatória. As pessoas têm que saber respeitar o novo, não podem ser resistentes. A realidade tem que ser observada com olhares afinados em ver a diversidade.
Antônio Milena/ABr
"As mulheres conquistaram seus postos legalmente, ou por concurso, ou por mérito, mas o que elas mais sentem? A dúvida sobre a sua competência" | Foto: Antônio Milena/ABr
Sul21 – Apesar de não existir uma homogeneidade nos movimentos feministas, podemos dizer que as mulheres têm alguma demanda em comum?
Lídia Possas - O que as mulheres mais retomam quando questionadas são as resistências por parte dos homens, especialmente as relacionadas ao trabalho. Elas conquistaram seus postos legalmente, ou por concurso, ou por mérito, mas o que elas mais sentem? A dúvida sobre a sua competência, quanto a sua fragilidade. Nos partidos políticos, por exemplo. Existem as cotas para mulheres, mas elas não são preenchidas devido às resistências. Dinheiro de campanha geralmente nunca vai de maneira equânime para todos. As mulheres que desejam participar da vida política sempre enfrentam restrições. Quer dizer, vieram as cotas, mas não veio essa mudança de atitude. É aí que entra a necessidade das lutas das mulheres, uma mudança de comportamento, de valores, que uma simples lei não transmite. Então, é preciso começar pela presença, pelo debate, pela educação.
Sul21 – Mas não há um confronto a respeito das mulheres quando elas conquistam lugares no poder? Quero dizer, quando se está na oposição o pensamento é um, quando se é situação o pensamento muda. Como isso afeta as demandas feministas?
Lidia Possas: Na verdade, a presença no governo é que dá o tom da discussão: “devemos ou não ter autonomia frente ao Estado?”, “Incorporar-se ao Estado não é ser tutelado?”, “Como manter nossa autonomia, nossas bandeiras sem cooptação pelo Estado?”. Esse é o momento da diversidade. Como manter nossa identidade, nosso perfil de luta e ao mesmo tempo como transitar na área institucional? Você pode ver, grande parte das nossas feministas estão na secretaria de políticas públicas. E como é que fica estar lá? Há discordância? Há divergência? Claro que há, mas há um principio legitimador que tem que estar lá, que tem que estar aceitando, mediando estas lutas. Ou seja, ainda são visíveis as dificuldades que as mulheres têm para alçar postos políticos, lugares de poder. Estes espaços são muito restritos. Não há uma guerra entre os sexos, eu já superei essa fase, mas sim uma guerra contra as resistências da sociedade como um todo.
UNESP / Divulgação
Lídia Possas: "Reforçar essa ideia de “natureza feminina” é uma faca de dois gumes. Se ela mostra que somos diferentes, ela acaba dizendo que essa diferença precisa de proteção" | Foto: UNESP / Divulgação
Sul21 – E nos locais menos conservadores, como se encontra esse processo?
Lidia Possas – Eu trabalho numa universidade, e não pense que na universidade o ambiente não é hostil. Hoje já não é mais tanto, mas quando eu entrei, há 18 anos, eu já estudava as questões de gênero de mulheres e o meu tema acadêmico de pesquisa era considerado de segunda categoria. No CNPq, você não conseguiria ter produtividade, que é o que todo o professor universitário almeja, com um projeto de segunda categoria. A área que eu trabalho é de relações internacionais, e eu tenho projetos elaborados pelos meus orientandos que são enviados para a FAPESP (Fundação de Amparo a Pesquisa no Estado de São Paulo). Houve um caso de um dos primeiros projetos que eu encaminhei, mostrando a questão das relações internacionais trabalhando com as questões de gênero. O projeto voltou porque eu não tinha, segundo o parecerista – e ele foi muito infeliz em seu parecer –, uma produção acadêmica na área das relações internacionais. E eu disse: “Eu não tenho mesmo, eu sou uma historiadora”. Nessa luta de pareceres eu e a minha orientanda ganhamos. Mas foi preciso provar pra essa comissão científica que o tema era relevante. E cada vez que você adentra nesse espaço, há uma luta, uma disputa de poder, como se eu devesse ficar quieta no meu lugar.
Sul21 – E estas pesquisas acadêmicas, como elas estão se dando?
Lidia Possas – As pesquisas estão evidenciando, estão dando maior visibilidade a esse silêncio das mulheres. Elas buscam ramificar a “história oficial”. Quer dizer, por que a historia oficial republicana não contemplou as mulheres como cidadãs? A cidadania civil só foi surgir em 1933, por um decreto de Vargas, mas efetivamente ela só foi ocorrer em 1946, depois do Estado Novo. Mas essas lutas surdas das mulheres existiram em vários estados. E nós desconhecemos as historias regionais. A gente tem uma ideia de uma historia nacional, que inclusive foi um principio de criar uma nacionalidade. No século XIX quando você tinha que criar o país, não era só criar o país, tinha que criar a nação. A nação tinha que ter uma historia, tinha que ter heróis nacionais, uma historia nacional. E isso encobriu essas especificidades regionais, que hoje, com as universidades – e o “hoje” que eu estou falando é a partir dos anos 1930 –, e a institucionalização da Pós-graduação estão começando a surgir. Aí a pesquisa passou a ser o fulcro básico da academia. E isso levou a essa diversidade de pesquisas, e é sobre isso que eu trabalho. Eu tenho um laboratório na UNESP, em Marília (SP). O laboratório se chama LIEG (Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero), porque não dá pra estudar gênero só numa área, você tem que veicular essa categoria, porque ela passa a ser uma ideia que oxigena pensamentos de outras áreas, como nas Relações Internacionais. Para se ter uma ideia, a categoria de gênero só adentrou as relações internacionais em 2002. Você via mulheres de diplomatas, mas não via elas exercendo cargos da diplomacia. O mesmo vale para o Judiciário, que é um poder altamente conservador.
Sul21 – Você disse anteriormente que já superou a guerra entre os sexos, mas muitas mulheres ainda acreditam nela…
Lidia Possas – De fato, e a prova esta nesse seminário (Seminário Internacional – Mulheres e a Segurança Pública, em Porto Alegre). O lema desse seminário é o momento da mulher é agora, e eu discordo, porque eu acho que o momento sempre foi da mulher. E a partir disso eu lanço a pergunta: por que um seminário sobre mulher e segurança pública? Vamos mais a fundo. Por que temos que criar um seminário de mulheres e segurança pública? Não era para ser necessário, não é? Se nós tivéssemos direitos plenos… Desde a fundação da República, que nós tivemos praticamente uma influência das ideias iluministas da Revolução Francesa, por que nós mulheres não somos consideradas cidadãs ainda, sob alguns aspectos? E temos que fazer um seminário sobre mulheres e segurança pública? Então a inferioridade está posta aqui, na capa do convite do seminário. Você tem que fazer inúmeros seminários para mostrar e obrigar homens e mulheres a falarem sobre o tema, porque a coisa é muito silenciada, é muito velada.
Antônio Milena/ABr
Ideia de que existe uma "natureza feminina" serve para colocar mulheres em posição de "cidadãs passivas", afirma coordenadora do LIEG | Foto: Antônio Milena/ABr
Sul21 – Alguns diriam que isso vem da própria natureza feminina…
Lidia Possas – O que mais incomoda hoje, e é isso que precisamos parar para refletir, é esse olhar antropológico, que parece dizer que a mulher já nasce com uma natureza. Essa tal da natureza feminina que me incomoda. Existe uma natureza feminina, uma natureza masculina, uma natureza negra, uma natureza indígena, mas a natureza da mulher foi tão construída fora dela que a exclui. A exclui porque ela é frágil, porque ela procria. Mas quantas mulheres deixaram de procriar, na historia da humanidade, e foram a luta? Vamos pegar no paleolítico, no neolítico. As mulheres também caçavam, também guerreavam. Se você pegar as espartanas, na própria historia da Grécia as mulheres lutavam. Não era a maternidade que as impedia. Mas interessou à República criar esta “natureza feminina” que as impedia de ascenderem, ou seja, delimita poder. Por isso que a gente acha que não é a natureza, é a cultura. Há uma briga entre a cultura e a natureza, é uma construção cultural que faz com que se reforce essa ideia da natureza feminina. Tem muita mulher que não tem essa “natureza feminina”. Ela chega e diz: “eu não quero ser mãe”. É um direito dela. E como você explica isso? E tem muitas mulheres hoje, por questões de profissão, por opções próprias e individuais, que não querem assumir a maternidade. Reforçar essa ideia que me preocupa um pouco, dessa “natureza feminina”, que diz que a mulher é mais sensível, é uma faca de dois gumes na minha opinião. Porque ela é um paradoxo. Se ela mostra que somos diferentes, ela acaba dizendo que essa diferença precisa de proteção. Precisa de cuidados diferentes do que os homens. E não coloca as mulheres como cidadãs plenas e sim como cidadãs passivas.
Sul21 – E desde quando isso se manifesta?
Lidia Possas – Isso vem desde a Revolução Francesa. O Estado queria cuidar da mulher, do corpo dela. Por quê?  Pela grande questão de hoje, que é a questão do aborto. A sociedade diz que o corpo da mulher não é dela, então é crime abortar. Tanto pra ela, quanto pro médico. E isso deveria ser uma decisão pessoal. Se o homem quer fazer uma circuncisão, o estado não interfere. Não se trata de estabelecer uma luta de poder dicotômica, do tipo “o homem pode, a mulher não pode”. Quero pensar a cidadania, a participação cidadã. Como as pessoas desconhecem essa historicidade, então acabam achando que isso é natural. E é agora, em pleno século XXI, com essas luzes sendo pontuadas em diversas partes do nosso país e da América Latina, principalmente depois da ditadura militar, que essas questões estão sendo pesquisadas e ganhando visibilidade.

Um comentário:

Mafuá do HPA disse...

Parabéns, Freitas. Adorei a entrevista dela ao JC (minha professora na USC, uma que definitivamente foi a que encaminhou de vez para um melhor entendimento dos embates históricos). Lídia é fera. Ontem também escrevinhei sobre a entrevista no Mafuá. Continuamos antenados. Henrique - HPA