19.7.10

O polvo Paul e o burro Chico (do Carta Maior)

Se Paul fosse o burro Chico, rapidamente haveria quem dissesse que o irracionalismo é coisa daqui. Não foi o presidente da República anterior que teria afirmado que iria transformar o Brasil em um país racional?

Luís Carlos Lopes

O episódio, já fora do ar, do polvo Paul sacudiu consciências e, dependendo do gosto, caiu no folclore e no chiste diário, proporcionado pelas grandes mídias locais e internacionais. Aliás, quem não gostaria de ter um animal de estimação capaz de prever o futuro? Os felizes proprietários de mascotes deste gênero teriam seus problemas diminuídos ou mesmo extintos. Não se sabe se os donos do polvo Paul ganharam algum dinheiro ou outro tipo de vantagem com suas mirabolantes e acertadas previsões futebolísticas. Entretanto, muita gente boa soube usar do fenômeno e faturar alto nos meios de comunicação de massa do tempo presente.

Não se sabe igualmente se alguém soprou ao simpático personagem marítimo os possíveis resultados ou se foi tudo acaso mesmo. Quem sabe, se o polvo não é mais inteligente do que as mídias e realmente tem um poder especial? Há quem acredite em duendes. Por que não em um ser real, velho habitante dos mares do mundo? O que se viu, além das gargalhadas generalizadas, foi que Paul escolhia entre o zero e o um, repetindo a inteligência dos computadores. O polvo foi sempre binário, por isso não previu o empate brasileiro com Portugal... Há controvérsias...

O que o episódio demonstra é que as mídias apelam por toda parte. Não é só por aqui. O polvo Paul vive na Alemanha, país culto, um dos maiores consumidores atuais de livros, de idéias e de arte. Os alemães de hoje vão à escola, têm profissões bem estabelecidas e um nível de vida incomum, mesmo para o conjunto da Europa. O país tem inúmeros problemas e contradições, entretanto, sua realidade é muito menos dramática das conhecidas na África e na América Latina.

Paul não é haitiano, não pratica o vodu e nem fala o créole. Não vive em um país com forte tradição mágica e espiritualista. Não conhece a miséria extrema de parcelas expressivas do povo de que faz parte e nem a miséria moral correspondente. Esta última é estampada com gosto pelas grandes mídias, que adoram tragédias e fazem de tudo para que não sejam compreendidas. Se Paul é uma expressão dos alemães do tempo presente, algo está fora do lugar ou então...

Se Paul fosse o burro Chico, rapidamente haveria quem dissesse que o irracionalismo é coisa daqui. Não foi o presidente da república anterior que teria afirmado que iria transformar o Brasil em um país racional? Invertendo a assertiva, ele, sem dúvida, concordava com o De Gaulle que achava que não havia seriedade no país, e com todos os demais racistas que entendem os países do hemisfério sul como incapazes de construir algo baseado na razão. Se o polvo fosse o burro seria xingado e não teria qualquer espaço maior das mídias, mesmo que pudesse ir além da lógica limitada seguida pelo Paul. Mas, ele é alemão, por adoção, apesar de não sabermos em que mares ele teria sido capturado.

O que este episódio demonstra é que o irracionalismo cresce exponencialmente em todo o planeta. Não há maior interesse em uma compreensão objetiva da vida. Esta é entendida como um jogo de azar, onde a sorte só existe como uma dádiva. A previsão da mesma, só pode ocorrer por meio de uma operação mágica. As mídias difundem a visão apocalíptica de que não se pode compreender e modificar o que cerca a todos. Tem-se que aceitar as coisas como são postas, porque elas já foram decididas antes de existirem de fato.

Os acontecimentos dos últimos trinta anos, somados à atual crise econômica mundial – felizmente por aqui os efeitos são menores – permitiriam compreender a atual onda de retorno à magia e ao obscurantismo. Vários autores, na tentativa de compreender o que se passa, lembraram da referência medieval ou dos regimes políticos contemporâneos que assassinaram a inteligência e tentaram impedir o avanço das ciências e das artes. Para eles, haveria algo destes passados, mantido no presente com muito cuidado e com os disfarces apropriados. Não há dúvida, que estes críticos têm alguma razão.

A realidade atual não é igual à da Idade Média, porque o que se vê por toda parte é a vitória do materialismo pragmático. Neste, o mais importante são os resultados materiais, mesmo que sob a roupagem da religiosidade, tal como se assiste nos movimentos fundamentalistas puritanos, pentecostais, carismáticos, islâmicos etc. O nazifascismo e suas variações universais só existem preponderantemente em suas formas líquidas. Estas não ousam desfraldar completamente suas bandeiras e nem ocupar o centro do poder, preferindo interferir a partir de uma posição bem ancorada nas sombras do poder. Ainda assim, o irracionalismo radical tem forte espaço, por vezes, igual ou maior do que o que teve nas situações e regimes citados.

O lugar onde o monstro que odeia a razão escolheu para habitar é o das grandes mídias. Nele, pode sobreviver sem maiores problemas em simbiose com as velhas tradições e os sempre renovados sensos comuns. Em outro texto, defendeu-se a tese do culto às mídias e dos novos deuses – as personas midiáticas. Este novo culto teria tudo a ver com o materialismo pragmático do tempo presente. As mídias seriam os novos oráculos – adivinhos – que diriam às pessoas o que elas gostariam de ouvir. A idéia de que se pode prever acontecimentos através da mágica da adivinhação é muito antiga e renasceu das cinzas no mundo atual.

Não se precisa mais observar as tripas das aves, a direção de queda do sangue de um animal abatido, nem mesmo olhar as estrelas. Nas mídias, as respostas seriam encontradas, mediadas pelos novos semideuses(as), modelos de virtude e de perfeição sobre-humana. Os novos oráculos não precisariam mais de poços, de fumaças, de cegos e de pitonisas. Suas respostas passaram ser mais diretas e se houver erros é porque não se soube interpretar corretamente os sinais. A vida concreta teria empalidecido frente ao poder imenso do Big Brother contemporâneo.


Luís Carlos Lopes é professor e escritor.

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